ARTIGO - Com “Sambatério”, Gervásio Horta revive todos os cemitérios de BH
- Cefas Alves Meira

- há 4 dias
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Hamilton Gangana*

Com mais de 150 canções no currículo, o polivalente compositor Gervásio Horta transita com extrema facilidade em vários espaços - jornalismo, publicidade, música, meio artístico e político, boêmia - e no dia a dia da cidade, que respira desde a primeira vista e admira como ninguém. “Google ambulante” seria um bom apelido para o compositor mineiro que sabe das coisas e “dá notícia de tudo”, graças a uma memória de elefante e a impressionante capacidade de escrever temas, compor melodias e contar casos.
Filho de médico, professor e músico - a avó e a mãe eram professoras de piano e as duas irmãs, pianistas -, Gervásio ouvia, sem querer, dentro de casa, sons repetitivos de notas musicais que incomodavam seus ouvidos. Ele nunca quis aprender a tocar nada, “nem cotonete nos ouvidos”, queria ser piloto de avião, mas foi impedido por um problema na vista e tornou-se compositor.
Nascido na então pacata Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri, Minas, a 450 km da capital, quando a cidade só tinha energia elétrica em uma parte da noite, através de geradores. Aos 14 anos veio para Belo Horizonte, mas foi morar com uma tia no Rio de Janeiro, onde fez Administração de Empresas na Fundação Getúlio Vargas. Voltou empolgado e ligeiramente acariocado.
Gervásio conta que aproveitou plenamente os 3 anos em que morou na antiga capital federal, intercalando as aulas na Fundação Getúlio Vargas com as tentações da praça Mauá, point da boêmia carioca, e as entranhas da Rádio Nacional, plantada num belo edifício na mesma praça. Enquanto admirava o talento e o estilo de vida de artistas consagrados daquela época, atendeu aos instintos extracurriculares de um jovem estudante de Minas, apaixonado pelo rádio, que retornou a BH formado em administração, experiente em rádio e doutorado em malandragem carioca.
O jovem encontrou na greve dos bancários, que ocorria no país, um bordão inédito para o seu primeiro jingle e primeira composição musical. Os grevistas reivindicavam um aumento salarial com teto de 7 mil cruzeiros, e os banqueiros batiam pé entre 4 a 5 mil, criando um biombo que dificultava as negociações. O impasse fez pintar a ideia original do jingle “Sete é Sete”. Lamartine Babo entrevistou o autor do jingle, em sua coluna de variedades no programa jornalístico-musical “Show Ingleza Levy. Hit das noites de domingo na extinta TV Itacolomi de BH, era produzido por Barbosa Lima, Sargentelli, Lamartine,Terezinha Mendes e outros cobras cariocas.
Mestre Lalá contou que tinha sido alertado que aquilo poderia ser coisa de comunista, mas resolveu encarar. E comentou: “Banqueiros são 20. Bancários, 20 mil, vale arriscar”, e botou o Gervásio em evidência. A entrevista viralizou e o tema do jingle gerou a marchinha de carnaval “Sete Amores”, cantada nas ruas e nos bailes do Rio, em 1960. “É sete é sete/Não é quatro não é três/Deixe a conversa de dizer/ Que é cinco ou seis/Banqueiro abre o cofre um pouquinho/Para auxiliar o meu filhinho/Eu quero pouco/Do muito que você tem/É sete é sete/O aumento que convém”.
E a greve terminou! A versão do carnaval no Rio: “É sete é sete/Não é quatro nem é três/São sete amores/ Que eu quero de uma vez” - a greve deu samba.
Gervásio passou a ser procurado para criar jingles e logo virou titular do time de craques da JMM-RJ, leia-se Joaquim Moacir de Medeiros - agência de propaganda que atendia o Banco Nacional, cujo dono era um dos candidatos ao governo de Minas, José de Magalhães Pinto (1909-1996). Fizeram uma campanha política ousada, que produziu jingles em profusão, utilizando a força e a sonoridade do rádio. Miguel Gustavo, nosso maior jinglista (“Noventa milhões em ação”...) dirigia a jovem equipe na agência.
Entusiasmado com o filão, GH tomou gosto e participou, entre outras, das campanhas de Lomanto Júnior (Bahia), Francisco Alencar (ES), Iris Rezende (Goiás), e tornou-se Assessor Especial no gabinete do governador eleito de Minas, José de Magalhães Pinto, atuando em vários setores do governo; aposentou-se aos 35 anos de serviço, em 1996. Ajudou a eleger os governadores de Minas, Israel Pinheiro, Tancredo Neves, Hélio Garcia, Itamar Franco, Newton Cardoso, e Fernando Collor de Mello à presidência.
Vivíamos as décadas 1960-1970, que mudaram tudo - hábitos, costumes e comportamentos. O anticoncepcional, empoderamento feminino, afirmação da indústria automobilística, o crescimento industrial e econômico, o avanço da tecnologia e o crescimento da agropecuária. A construção de Brasília, a ascensão da TV, a bossa nova, o rock, “ié,ié, iê” e a Jovem Guarda, Beatles, Elvis Presley, Rolling Stones. Festivais de música, as novas estrelas da MPB, o Cinema Novo, eleição e renúncia do presidente Jânio Quadros; o parlamentarismo, a deposição do presidente eleito João Goulart.
E ainda: a revolução de 1964, com os ditadores militares assumindo o poder; o feito extraordinário do homem caminhando no solo da Lua, o Brasil a sexta potência econômica e tricampeã mundial de futebol. Nas ruas, as grandes manifestações de estudantes em passeatas de protesto. A MPB explode de vez e corre mundo afora, exibindo talento e criatividade.
Premiado mais de 20 vezes, o cidadão honorário de BH Gervásio Horta produz em alta escala com o parceiro e amigo Rômulo Paes (1918-1982) e com outros atores, mostrando sua versatilidade. Criou sambas, choros, boleros, forrós, baiões, valsas, hinos, em diferentes estilos, gravadas por feras como Jorge Veiga, Nelson Gonçalves, Jackson do Pandeiro, Jorge Goulart, Léo Vilar, Silvinho da Portela, Jorginho do Império, Waldick Soriano, Orlando Dias, entre outros cobras.
O compositor gravou com as estrelas da casa Serginho Beagá, Marcio Greyck, Tino Gomes, Carla Vilar, Jaime e Juarez, Fabinho do Terreiro, Helena Penna, Acir Antão, Chiquinho, “Lagoinha”, Ronaldo Adriano, Paulinho Pedra Azul, Marku Ribas, Rubinho do Vale, Toninho Geraes, Bira da Favela, Nós & Voz, Maurício Tizumba, Lucinha Bosco, Marcelo Jiran, além de instrumentistas, grupos de choro, samba e corais.
Gervásio criou várias músicas em homenagem a BH: “Manhãs de Belo Horizonte”- “Uma cidade que adormece tão feliz…) “Rua da Bahia” - “A águas já rolaram na rua da Bahia”...(com Rômulo Paes) - “Adeus Lagoinha” - “Estão levando o que resta de mim”... “Bela Belô - “Eu sou do tempo em que o Arrudas tinha peixes…” -“Subir Bahia e descer Floresta, “Mercado Central”, “Lindo Barro Preto”, “Praça Sete”, Rua Goiás, entre outras. Fez músicas para Rômulo Paes, Acir Antão, Pacífico Mascarenhas, Seu Olímpio (Cantina do Lucas), Chiquinho, Waldir Silva, Mozart Secundino, para o estádio Mineirão e Corpo de Bombeiros Militar; criou hinos para o Atlético, Vila Nova e o bonito “Hino do Centenário do Cruzeiro” (2021) - “O time do povo/a nossa paixão”.
O monumento a Rômulo Paes, um painel de aço com 7,5 m de altura, na rua da Bahia com avenida Álvares Cabral com a frase em alto relevo “Minha vida é esta, subir Bahia e descer Floresta” é ideia de Gervásio, com ajuda do arquiteto Gustavo Penna e apoio do BDMG, Prefeitura de BH, Usiminas e empresa EPO. Instalado em 1995, no governo do prefeito Patrus Ananias, o espaço foi batizado como “Praça Rômulo Paes”, na mais tradicional e badalada rua da cidade.
Criativo por natureza, Gervásio reconhece que gosta de fazer homenagens às pessoas e às coisas da cidade. Avesso à promoção pessoal, é solteiro e vive em seu aprazível chalé no bairro Prado, de onde quase não sai. O compositor tem orgulho ao dizer que foi o principal parceiro do nosso maior compositor Rômulo Paes, uma figura singular de BH, de quem se tornou amigo íntimo.
Gervásio chegou às lágrimas, ao ouvir a canção de sua autoria “Manhãs de Belo Horizonte” interpretada pelo “Coral Mil Vozes”, sob a regência da maestrina Júlia Pardini, na Praça da Bandeira, alto da avenida Afonso Pena, nas comemorações oficiais dos 100 anos de BH, em 12 de dezembro de 1997. O médico e prefeito Célio de Castro (1932-2008) não conteve a emoção e quebrou o protocolo, ao tocar no bolo gigante e lamber os dedos, provocando risos da multidão.
Gervásio nunca perde a oportunidade de disparar um comentário bem-humorado sobre qualquer assunto, ou criar uma frase de efeito, como “Rômulo Paes e coisas mais”, ou o programa da rádio Inconfidência. “Com sua música, Rômulo nivelou as classes A e C; se eu não falar da minha cidade, quem vai falar?”, diz.
Gervásio valorizou lugares tradicionais, como o Café Palhares, Mercado Central, Restaurante Rosário, Cantina do Lucas, Mocó da Iaiá, Gruta Metrópole e o notório Café Nice, de 1939 e reinaugurado na avenida Afonso Pena, onde se concentrava a “Turma do Palitinho” para jogar porrinha, fazer fofoca, falar de futebol, política e mulheres.
O romântico “Sambatério”, feito em homenagem aos cemitérios de Belo Horizonte, todos (“com nomes muito bonitos”, afirma) tem o DNA de Gervásio Horta, e é interpretado por Fabinho do Terreiro: “Você roubou meu juízo/ Matando a minha PAZ/ Vê se para com isso/Não fique assim/Do jeito que a coisa vai eu penso/Que estou indo direto para o Bonfim/Sem Consolação/Mas com maldade/O nosso amor ficou na Saudade/O Bosque da Esperança saiu da nossa retina/E eu só vou Renascer/Lá no Parque da Colina”.
É a primeira vez que o cemitério dá samba. Comenta-se, com todo respeito, que, entre vivos e mortos, todos gostaram!
(*) Hamilton Gangana é publicitário




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